História de A.A. no Brasil


ASPECTOS HISTÓRICOS DE A.A. NO BRASIL - DIFÍCIL COMEÇO
Corria o ano de 1945, um membro viajante norte-americano, de nome Bob Valentine, amigo de Bill W., de passagem pelo Rio de Janeiro, então capital nacional, conhece uma pessoa também americana (não está totalmente definido se era homem ou mulher), com o nome de Lynn Goodale. Após uma conversa com Bob Valentine, Lynn encontra a sobriedade.

A Fundação do Alcoólico era a responsável direta pela correspondência de Alcoólicos Anônimos com a sociedade e o elo entre a correspondência de seus membros. Portanto, Bob Valentine, de volta aos EUA, em visita à Fundação, passa-lhe o endereço de Lynn, como possível contato no Brasil.

Prontamente, a secretária da Fundação do Alcoólico escreve-lhe uma carta na qual solicita a confirmação do contato brasileiro, dizendo-se feliz por poder assinalar um ponto na cidade do Rio de Janeiro em seu mapa de contatos no exterior. Ao receber essa correspondência, Lynn responde afirmativamente sobre incluir-se como contato de A.A. no Rio de Janeiro e informa que sua estada no Brasil seria por pouco tempo. Solicita também algum material (memorandos, boletins etc.) e diz: "Há quatro meses evito o primeiro gole; fazendo algo, creio que manterei minha sobriedade (...) gostaria de ter alguma participação no crescimento de Alcoólicos Anônimos aqui no Brasil."

A carta de agosto de 1945, assinada por Margareth Burger, então secretária da Fundação do Alcoólico, não altera muito os acontecimentos mas marca o final da correspondência e Lynn Goodale sai de cena.

No ano seguinte, a Fundação do Alcoólico recebe a seguinte correspondência, vinda do Brasil:

"Rio de Janeiro, Brasil, 19 de junho de 1946.

Ao Secretário do
A.A. Cosmopolitan Club
Nova Iorque

Prezado Secretário:

Há coisa de um mês atrás o remetente desta esteve em seu Escritório e, antecipadamente prevendo sua mudança aqui para o Rio de Janeiro, solicitou algum contato com um membro de A.A. Fui gentilmente informado do nome de Lynn Goodale - Av. Almirante Barroso nº 91, como tal. Lamento informar que devido ao meu precário português, ou pelo endereço incompleto, fui incapaz de localizar essa pessoa e o auxílio das listas telefônicas locais também foi insuficiente.

Você teria a paciência suficiente (considerando que o correio aéreo regular consome cerca de 29 valiosos dias na ligação Nova Iorque/Rio de Janeiro) de fornecer-me instruções suficiente para contatar essa pessoa ou qualquer outro membro de A.A. no Rio?

Obrigado por seu interesse

Herbert L. Daugherty
Rua Gustavo Sampaio nº 86 - apto. 402

P.S. Você poderá incluir-me como contato para o futuro?"

Tratava-se de Herbert L., um publicitário norte-americano, sóbrio desde 1945, quando conheceu Alcoólicos Anônimos em Chicago, que veio ao Rio de Janeiro, juntamente com sua esposa Elizabeth, para cumprir um contrato de três anos como diretor de arte numa grande companhia internacional de publicidade.

A resposta da Fundação trouxe-lhe o nome de outras pessoas, Don Newton e Douglas Calders, as quais poderiam ajudá-lo; informou-lhe sobre a postagem de um "suprimento grátis de literatura" e trouxe-lhe um pedido de abordagem a um jovem de Recife.

Preocupado em manter sua sobriedade e decidido a começar um Grupo de A.A. no Rio, Herb (como era conhecido) decide escrever à Fundação, meses depois do último contato, dizendo não ter encontrado as pessoas indicadas. Nessa carta, datada de 2 de junho de 1947, Herb também informa que ele e sua esposa já haviam se adaptado bem no Brasil e solicita mais nomes e endereços de possíveis AAs no Rio.

"Lynn Goodale e Don Newton deixaram o Rio de Janeiro" - diz a correspondência vinda da Fundação, a qual também traz um pedido preocupado: "Não deixes passar outro ano sem correspondência" - e informa ao casal o novo endereço de Douglas C.

As cartas entre a Fundação do Alcoólico e Herb continuaram. Na próxima, Herb envia um cartão constando seu nome e endereço, cadastrando-se oficialmente como contato de A.A. no Brasil.

Quarenta e sete foi o ano dos acontecimentos que culminaram com o início efetivo de A.A. no Brasil. No mês de julho, Herb recebeu endereço de outro AA residente no Rio de Janeiro e alguns panfletos em espanhol e, em outubro, a Fundação expressa sua felicidade pelo início de um Grupo de A.A. no Brasil.

Contudo, há uma lacuna entre a carta de julho e a de outubro. Foi justamente na época que se inicia o primeiro Grupo.
PRIMEIRO GRUPO DE A.A. NO BRASIL
O NÚCLEO DE A.A. DO RIO DE JANEIRO - "A.A. Rio Nucleus"

5 de setembro, por que?

Pouco se tem documentado sobre a formação do primeiro Grupo de A.A. no Brasil. O que se pode afirmar é que esse Grupo inicialmente era formado por norte-americanos a serviço no Rio de Janeiro e que o idioma das reuniões, sediadas nas casas ou apartamentos dos companheiros, era o inglês. A maior dificuldade que Herb teve, aparentemente, foi a de não falar fluentemente o português. Ele queria transmitir a mensagem de recuperação a brasileiros ou a quem falasse fluentemente o nosso idioma, pois sabia que quando de sua volta aos Estados Unidos, provavelmente todo o seu trabalho seria perdido.

Alguns pontos, inclusive a data do início do "A.A. Rio Nucleus" ou Grupo A.A. do Rio de Janeiro, durante tempos foram envoltos em mistério e em controvérsias. Vamos agora fazer uma parada na dissertação e dar uma olhada num fato sobre a formação desse Grupo.

Pudemos observar que o livro de registros do Grupo A.A. do Rio de Janeiro, na data de 29/8/50 traz a seguinte anotação:

"Data - aniversário.

Na reunião de hoje deliberamos comemorar o 3º (terceiro) aniversário da Fundação do Grupo A.A. do Rio de Janeiro no dia 5 (cinco) de setembro próximo.

A referida data ficará, por tradição, como a data oficial da fundação do Grupo.

Rio de Janeiro, 29 de agosto de 1950.

Fernando, secretário."

Esse registro documentado é a mais clara evidência de que a data de início do primeiro Grupo de A.A. no Brasil foi 5 de setembro de 1947. Infelizmente o secretário não menciona detalhes como: onde foi realizada a reunião inaugural, quem foram os participantes dessa reunião etc.

O mais provável é que nessa data deu-se o encontro de Herb com o primeiro brasileiro que conseguiu manter-se sóbrio em A.A., o companheiro Antônio P., falecido em meados de 1951, quando tentava recuperar-se de um acidente de trabalho.
TRABALHO ÁRDUO COM OS OUTROS CRESCIMENTO DO GRUPO GRAÇAS À INTENSA DIVULGAÇÃO
Na carta de outubro, vinda da Fundação do Alcoólico, e que comentamos anteriormente, há uma sugestão para que o recém formado Grupo trabalhasse firme na pulgação: "... por todos os meios, prossigam com os planos de levar Alcoólicos Anônimos ao conhecimento público. Muitos Grupos têm achado que são de grande ajuda os artigos nos jornais e não há contra-indicações quanto a isso, contando com as Tradições de A.A. - anonimato, propósito, dinheiro etc. (...) Depois de estrondosa abertura à publicidade, um grande número de Grupos tem usado anúncios pequenos informando que estão funcionando e o endereço onde maiores informações poderão ser obtidas."

Baseando-se, talvez, nessa sugestão, foi que Herb encaminhou uma carta ao Jornal O Globo. O editor ficou muito entusiasmado e o artigo apareceu na primeira página da edição de 16 de outubro de 1949.

"Alcoolistas Anônimos - Uma Sociedade de Fins Meritórios" era o título do artigo que detalhava o funcionamento de A.A.: "Alcoólicos Anônimos é uma sociedade composta por pessoas que tendo sido bebedores inveterados conseguiram livrar-se do alcoolismo e trabalham com o intuito de se ajudarem mutuamente a se manterem sóbrios. Sendo ex-bêbados, não entramos em discussão com aqueles que bebem normalmente ou com os fabricantes de bebidas alcoólicas, nem somos contra essas pessoas. Não temos também, como Grupo, qualquer ligação ou filiação com determinada igreja ou organização missionária ou organização de temperança. Como ex-bêbados, estendemos a nossa simpatia e auxílio a qualquer pessoa de qualquer classe social e de qualquer religião, que tenha perdido o controle sobre a bebida e que, sinceramente, queira abandonar o vício." Apesar de falar em "vício", o artigo mostrava também o aspecto "doença". Mencionava algo sobre o anonimato e o Primeiro Passo e, por fim, solicitava aos interessados que escrevessem cartas à redação do jornal, endereçadas ao núcleo brasileiro de A.A.

O artigo repercutiu e Herb respondeu cerca de dez cartas de pessoas pedindo ajuda e o jornal solicitou outro artigo.

Depois, Herb e sua esposa - que parece ter sido a redatora da maioria das cartas - noticiaram o fato à secretária da Fundação do Alcoólico que, posteriormente, transmitiu as boas novas a Bill W. Nesta mesma correspondência Herb demonstra preocupação em registrar a Irmandade junto ao governo brasileiro e informa ter encontrado Douglas C., com quem já havia feito algumas reuniões.

A manifestação da Fundação, através de sua secretária, Margareth Burger, foi típica de A.A. Lendo a carta de novembro de 1947 pode-se sentir a emoção com que receberam a notícia do progresso brasileiro. Foi aí também a primeira referência sobre a tradução do Livro Grande e de outros folhetos para o português e a informação de que só havia tradução para o espanhol.

Quanto ao "registro" junto ao governo, a funcionária da Fundação disse: "Discuti com Bill W. o assunto do material apropriado para submeter à apreciação do governo brasileiro. Bill acha que vocês podiam explicar às pessoas daí que A.A. não é uma incorporação, mas é simplesmente uma organização sem fins lucrativos cujo propósito primordial é o de ajudar na recuperação do portador da doença do alcoolismo, se ele o desejar. Caso vocês nos dêem o nome para contato com o governo brasileiro, a Junta de Custódios de A.A. poderá enviar a Constituição da Fundação do Alcoólico, que foi fundada para agir como uma espécie de Comitê de Serviços Gerais para Alcoólicos Anônimos."

Aqui cabe uma pausa. Nesse trecho podemos notar o que Bill W. pensava quando dizia que ele e Dr. Bob eram o elo entre os Grupos e os Custódios da Fundação. No caso desse registro brasileiro, vemos como Alcoólicos Anônimos ainda carecia de uma estrutura e como Bill W. era o consultor direto da Fundação do Alcoólico.

Voltemos aos fatos. Só em abril próximo (1948) a Fundação recebeu a resposta do casal Herb e Libby, como era chamada Elizabeth. Isso, segundo Herb, devia-se ao "tempo e trabalho árduo". Nessa época havia várias boas-novas: "... contamos com quatro brasileiros. Somos seis, se incluirmos Doug C. e eu mesmo. Esses quatro brasileiros estão abstêmios há seis meses ou mais. Nosso mais novo recruta veio através de uma carta que havíamos escrito a um pastor daqui. Trata-se de um anglo-brasileiro que tem lido tudo que se relaciona com A.A. Traduziu os Doze Passos para o português, ajudou-nos a escrever um artigo para os jornais aqui do Rio de Janeiro e, no momento, está nos ajudando a traduzir um folheto de A.A."

Nessa época vários artigos já haviam sido publicados em jornais brasileiros e uma matéria foi veiculada num jornal direcionado à comunidade de língua inglesa no Brasil, o Brazil Herald. Eles também estavam com um material novo pronto para publicação, aguardando somente o número de uma caixa postal a ser usada como endereço para correspondência. Além de tudo isso, o recém formado Grupo já havia postado cerca de trinta cartas (sendo a metade em inglês) a médicos, igrejas e outras entidades do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. Enfim, essa correspondência foi tão carregada de progressos que posteriormente a Fundação solicitou sua publicação na Grapevine.

Na correspondência seguinte, vinda da Sede, notou-se a preocupação com a tradução do folheto para o português. Assim, foi solicitado a Herb que encaminhasse um exemplar para análise, bem como cópia de alguns dos artigos publicados nos jornais brasileiros, para apreciação e arquivo.

Nesse mesmo mês, o livrete (ou folheto) de A.A. estava quase totalmente traduzido e a Associação Cristã de Moços (ACM) emprestou uma de suas Caixas Postais a Alcoólicos Anônimos, fato noticiado de pronto à Nova Iorque.
"LINGUAGEM DO CORAÇÃO"
Depoimentos em "preto e branco"
Sem sombra de dúvida, a maior dificuldade encontrada por aqueles pioneiros no Brasil foi o idioma. Os brasileiros que chegavam não entendiam o inglês e os americanos, residentes ou de passagem pelo Brasil, pouco ou quase nada falavam em nossa língua. Até mesmo Herb, já há dois anos no Rio, pouco dava "colorido" aos seus depoimentos em português - como ele mesmo mencionou. Hoje entendemos que só através da linguagem do coração, aquela que acontece quando um alcoólico fala com outro, é que esses membros se comunicavam. A recuperação, mesmo no Grupo, tornava-se quase um desafio. Sentia-se muito a falta da tradução do livro Alcoólicos Anônimos; em virtude disso, alguém traduzia uma pequena parte e lia a cada reunião. Com esse quadro de dificuldades, era premente a necessidade de receberem membros que falassem fluentemente os dois idiomas. Talvez por isso, deu-se tanta importância à chegada de Harold, mesmo sendo Antônio P. o primeiro brasileiro a chegar. Vamos relembrar um pouco do encontro entre Herb e o valoroso Harold, numa carta escrita por ele mesmo e publicada na Grapevine em novembro de 1990.

"A história de A.A. do Brasil começa em junho de 1946, quando Herb D., que havia ficado sóbrio há um ano em Chicago - EUA, vem para o Rio de Janeiro com um contrato para trabalhar como diretor artístico de uma empresa americana de publicidade. Como era novato no programa, sua preocupação imediata foi procurar a Irmandade na cidade onde ele viveria por três anos. Alcoólicos Anônimos, entretanto, era desconhecida no Rio de Janeiro, embora Herb tivesse alguns nomes para fazer contato. Visto que nenhum desses companheiros permanecia por muito tempo no Brasil, a Irmandade ainda não havia criado raízes.

Após alguns meses de tentativas, Herb esperou pelo interesse de bebedores-problema brasileiros (e havia muitos no Rio naquela época), para ajudarem-no a manter-se sóbrio e, levando a mensagem, formarem um Grupo no Brasil. Como em todo o mundo naqueles dias, os alcoólico no Brasil eram considerados um estorvo social dos quais o verdadeiro lugar era numa clínica psiquiátrica ou na delegacia de polícia.

Em 1947, Herb conseguiu bebedores brasileiros como ingressantes. Um desses era Antônio P., que parou de beber e manteve-se sóbrio com alguma dificuldade, em virtude da falta de literatura traduzida para o português, até sua morte num acidente em 1951. O outro brasileiro afastou-se. As reuniões aconteciam nas casas de companheiros que estavam sóbrios.

O grande apoio a Herb vinha de sua esposa, Libby, uma não-alcoólica que o incentivava muito no seu trabalho de levar a mensagem. Herb tinha uma correspondência volumosa com a Fundação do Alcoólico e conseguiu publicar alguns artigos sobre A.A. nos jornais do Rio.

No início de 1948, graças à boa vontade de um bispo episcopal que estava no Rio, Herb encontrou-se com Harold. Ele era um anglo-brasileiro com um caso de alcoolismo tido como perdido. Tinha servido o exército britânico durante a Segunda Guerra Mundial, retornando ao Rio de Janeiro em 1946. Nesse ínterim, havia perdido vários empregos, fora expulso da casa de seus sogros, perdido sua esposa e, por fim, ido morar no porão da casa de um irmão na cidade de Niterói, do outro lado da Baía da Guanabara. O bispo e o irmão de Harold arranjaram um encontro entre os dois para um sábado.

Nesse primeiro encontro, Herb contou a Harold (que havia bebido a manhã toda) a história de como tinha parado de beber substituindo, gole a gole, a bebida de seu copo por água pura, até que passasse a beber somente a água. Como, após muitas tentativas frustradas, ele tinha sido capaz de evitar encher o copo com bebida alcoólica e, assim, evitar o primeiro gole. Ele falou também sobre o plano das vinte e quatro horas, sobre a melhora em sua vida pessoal e empresarial. Por fim, Herb pediu a Harold que pusesse o sistema em prática e que, quando ele parasse de beber, tentasse traduzir o máximo possível do folheto sobre A.A. que lhe entregara. Herb havia trazido esse folheto dos Estados Unidos. Os dois combinaram encontrar-se na quarta-feira seguinte, no prédio da Associação Brasileira de Imprensa, no centro do Rio, para que Harold mostrasse os progressos tidos com a tradução.

Na data marcada Harold teve um apagamento nas primeiras horas do dia, após ter tomado aquele que seria seu último gole, usando o método sugerido por Herb. Apesar disso, naquela manhã, Harold barbeou-se, tomou banho, vestiu roupas limpas, comeu algo com a família incrédula do irmão e colocou-se a caminho - sóbrio, mas com uma terrível aparência - para encontrar-se com Herb, levando algumas páginas do que tinha traduzido. Os dois encontraram-se no salão de café do prédio e, nesse encontro, um novo período de um mês foi fixado para que Harold, sóbrio, terminasse a tradução. Herb iria mandar imprimir a versão em português. Demorou mais do que o previsto, porém no início de 1949, o panfleto estava impresso e começava a ser distribuído a todos que o solicitavam.

Em junho de 1949, quando Herb retornou aos Estados Unidos, havia um Grupo com doze membros sóbrios que se reuniam regularmente todas as segundas-feiras, à noitinha, numa pequena sala da Associação Cristã de Moços do Rio de Janeiro. Herb, no início, apelidou o Grupo de "Os Doze Desidratados". Depois foi formalmente chamado de "O núcleo de A.A. do Rio de Janeiro" e, finalmente, ficou com o nome de "Grupo Rio de Janeiro de A.A."

Harold W."

Data de agosto de 1948 o cadastro de Herb e Harold como membros do "Núcleo A.A. do Rio de Janeiro", com o número da Caixa Postal cedida pela ACM, e o endereço da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) como local de reuniões.
A UNIDADE NO GRUPO
COMO FUNCIONAVA O GRUPO RIO DE JANEIRO DE A.A.
As correspondências da época demonstram claramente o espírito de Irmandade que havia entre os membros do primeiro Grupo de A.A. no Brasil. Os mais antigos demonstravam uma grande preocupação com os novos membros, especialmente com os brasileiros, nas reuniões que aconteciam ora em casa de um membro ora na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Apesar dos vários americanos participantes, era sabido que a maior parte deles estava somente de passagem, a trabalho. Nas entrelinhas de uma carta de 1949, escrita por Antônio P. a Harold, que se encontrava temporariamente no sul do país, observamos a unidade entre aqueles poucos companheiros, quinze ou mais. A carta também falava sobre o problema que tiveram com o tesoureiro do Grupo que havia se afastado com a reserva financeira. A solução encontrada foi uma "coleta secreta" entre os companheiros, para saldar a pequena dívida apresentada e incentivar o retorno do companheiro, o que aconteceu mais tarde. De fato, os problemas de Grupo já existiam, no entanto, as sábias decisões também.

Nesse ano já contava-se com um bom número de brasileiros assíduos no Grupo e várias reuniões eram feitas em português, com tradução simultânea aos que só falavam inglês. Esse fato trouxe tranqüilidade a Herb, pois voltaria à América do Norte dentro de pouco tempo, mais precisamente em junho de 1949. Mas antes que isso ocorresse, foi bem-vinda uma norte-americana, Eleanor, uma das primeiras mulheres AAs no Brasil, talvez a primeira. Ela incumbiu-se logo da correspondência com a Sede em Nova Iorque, bem como da tradução do material recebido.

Em 1950, o Grupo passava por problemas financeiros e recorreu à Fundação para aquisição de alguns livros. Vale notar que a Fundação mantinha uma reserva financeira do Grupo brasileiro, a qual nesse ano foi diminuída pela metade a título de contribuição à Sede de onde periodicamente vinham boletins e cartas. Nessa ocasião foi solicitado também um exemplar do Manual do Secretário. Aparentemente os encargos existentes eram o de tesoureiro e o de secretário, que era uma espécie de coordenador geral.

O Grupo fixou seu endereço à rua Santa Luzia, de onde se mudou após um ano, quando começou a eleger mensalmente um coordenador de reuniões. A impressão do livrete "Como Cooperar para uma Obra Meritória", segundo número da literatura em português, deu-se nesse período. Era uma cópia fiel do capítulo sete (Trabalhando com os Outros) do Livro Grande, estrategicamente traduzido quando o Grupo precisava crescer para se firmar e originar novos Grupos.

Em 1951 o companheiro Antônio P. sofreu um acidente de trabalho, teve seu pescoço quase degolado e faleceu quando ainda passava por cirurgias plásticas. Antes de sua morte recebeu uma carta de Harold, da qual reproduzimos o seguinte trecho:

"Você é um herói, Antônio, não há dúvida de que entre todos nós você é o AA número um (primeiro)! Pode ser um dos menores por fora, mas dentro dessa alma enorme e forte, cabemos todos nós folgadamente. Sem dúvida alguma você conseguiu o que eu, pelo menos, ainda não alcancei: traduzir e interpretar bem a vontade e as intenções do Poder Superior, e ser forte na certeza de que ele está sempre ao seu lado, podendo enfrentar cada dia com paz de espírito e serenidade. Que Deus lhe abençoe, meu bom amigo."

Provavelmente Antônio teve dificuldades em se fixar nO Programa de Recuperação (Os Passos) devido à linguagem, mas manteve-se firme em suas vinte e quatro horas até o final de sua vida.
A DIFÍCIL TAREFA DE DIVULULGAR A MENSAGEM
UM MAL-INTENCIONADO ARTIGO DISTORCE OS PRINCÍPIOS DA IRMANDADE
Tudo o que os iniciadores tinham feito até os idos de 1952 fora transmitir a mensagem. Herb, já em 1947, fora o autor de uma matéria no jornal O Globo. A partir daí uma sucessão de "boa publicidade" aconteceu; foram várias as matérias publicadas a bem de nossa recém forjada Quinta Tradição. Por falar em Tradições, elas haviam sido aprovadas no ano anterior, em Cleveland, e os Grupos de A.A. em geral tentavam seguir esses doze pontos para assegurar o futuro de A.A. Mas como no início da história da irmandade de A.A. nos EUA, aqui no Brasil também tivemos problemas relacionados aos princípios tradicionais.

Uma das primeiras "desavenças" envolveu Harold num artigo que refletiu várias inverdades sobre a irmandade de A.A.: "Os Regenerados do Álcool", da Revista da Semana.

Provavelmente com finalidade meramente noticiosa ou sensacionalista, a Revista da Semana coloca aos seus leitores um "furo de reportagem" sobre "uma sociedade secreta dos antigos viciados" . Tudo começou com uma farsa.

O repórter iniciou o trabalho de "desvendar o mistério" - usando uma expressão do texto - com telefonemas a Harold W., dizendo-se bebedor inveterado e ansioso por ajuda. Prontamente, como deveria ser, o companheiro marcou um encontro no qual sua primeira pergunta foi: "Quais são os sintomas que você sente quando bebe?" A resposta, o repórter comenta na matéria: "Por um instante ficamos paralisados sem saber o que responder. Da resposta que déssemos a essa insignificante pergunta, dependeria o sucesso da reportagem. Aquelas palavras, ditas à queima-roupa, soavam com violência e ressonância aos nossos ouvidos. Naquele momento estava em jogo todo o trabalho de preparação, os esforços que fizemos para descobrir os responsáveis pela secreta agremiação, o assunto de suma importância para nós, enfim, tudo seria sacrificado se não respondêssemos satisfatoriamente. Havia a necessidade de respondermos ter o malsinado vício, que éramos beberrões inveterados em busca de salvação e amparo. E foi o que fizemos, com êxito."

A partir daí todos podem imaginar o teor comercial da reportagem. O artigo foi ilustrado pela capa e contracapa do folheto branco, e pela foto de Harold almoçando, fruto de um mirabolante plano. A repercussão na Irmandade não é muito citada nos documentos que dispomos. No entanto, exatamente uma semana após a publicação, Harold escreveu ao diretor da revista consternado por ter sido ludibriado e pela quebra da Tradição do Anonimato. Nessa carta Harold esclarece também os pontos distorcidos na revista. Discorre com detalhes sobre o princípio do Anonimato, sobre nosso propósito único, a respeito da recuperação em A.A. e encerra dizendo: "Se o seu repórter tivesse comparecido e declarado sua verdadeira intenção, eu teria ajudado com o máximo prazer a apresentar uma reportagem que não afetasse desfavoravelmente os princípios da agremiação humilde de A.A. ou dos seus membros, nos moldes das publicadas anteriormente no Brasil por conceituadíssimos periódicos."

O assunto da reportagem parece não ter ido muito à frente, mas provavelmente ajudou na resolução de se constituir um órgão de serviço de A.A. juridicamente, com registro em cartório.

Em dezembro daquele ano um estranho estatuto, mais as Doze Tradições, foram registrados no Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Estranho porque entre as incumbências do secretário geral do Conselho estavam: "Orientar e fiscalizar todos os Grupos e seus membros, evitando qualquer ligação com outras entidades e exploração de qualquer natureza" e "Fazer cumprir as Tradições e estes estatutos."

Ainda falando em pulgação na imprensa, em 1953, o jornal A Noite, num artigo equivocado, dizia que Alcoólicos Anônimos havia sido fundada no Brasil, naqueles dias, quando o Grupo Rio de Janeiro de A.A. findava sua atividade e já contávamos com outros Grupos, dentre eles o Central do Brasil, formado em 1952. Não obstante, a pulgação continuou, inclusive no rádio. Em 1956, contávamos com cerca de treze Grupos brasileiros registrados no catálogo mundial.

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